Tarquínio, o Soberbo, último rei de Roma, criminalizou a iniciativa do seu
antecessor de tributar cada um segundo as suas possibilidades[1].
No Brasil não chegamos a tanto, mas sequer no imposto de renda das pessoas
físicas – o tributo mais bem aparelhado para captá-la – levamos a sério a
capacidade contributiva.
Segundo a alínea b do inciso II do art. 8º da Lei nº 9.250/95, são
dedutíveis da base de cálculo do IRPF os pagamentos feitos a instituições de
ensino, do infantil à pós-graduação, passando pela educação profissional.
Na forma dos itens 7 a 9 do mesmo inciso, tais descontos ficam sujeitos ao
teto individual (para o contribuinte e cada um de seus dependentes) de R$
3.091,35 para o IRPF 2012/2013, R$ 3.230,46 para o IRPF 2013/2014 e R$ 3.375,83
para o IRPF 2014/2015.
Dois são os déficits desse sistema:
● a sua insuficiência objetiva, por não contemplar atividades
essenciais à formação e ao aprimoramento intelectual e profissional do cidadão,
como a aquisição de material didático, as aulas particulares e os cursos de
idiomas, de artes e pré-vestibulares;
● a sua insuficiência quantitativa, por estabelecer — quanto às
rubricas autorizadas — limite de dedução claramente irrealista.
A ação direta, distribuída à Ministra ROSA WEBER, volta-se apenas contra o
segundo ponto, dadas as dificuldades de execução de julgado que reconheça
inconstitucionalidade por omissão.
Pois bem: a Constituição dá a máxima importância à educação, a qual define
como direito social (art. 6º), direito de todos e dever do Estado, da família e
da sociedade (arts. 205 e 227) e atribuição comum das três ordens de governo
(art. 23, V).
O art. 208, porém, limita à educação básica o dever de prestação universal e
gratuita (inciso I), não prevendo mais do que a “progressiva universalização
do ensino médio gratuito” (inciso II), e nem isso em relação ao ensino
superior (inciso V) e ao profissionalizante (art. 214, IV).
Apesar dos rigores da Carta — responsabilidade do administrador em caso de
não-oferecimento da educação básica (art. 208, § 2º) —, ninguém ignora que este
mínimo não chega a ser plenamente cumprido.
Donde a significativa participação das instituições particulares na educação
brasileira: 36% do contingente das creches, 24% das pré-escolas, mais de 12% do
ensino fundamental, 56% do profissionalizante[2] e mais de 70% do superior[3].
É também sabido que, com honrosas exceções, a instrução pública
não-universitária sofre de um déficit qualitativo em comparação com a
particular, o que é comprovado por dados oficiais do Ministério da Educação[4].
Ciente da dupla insuficiência, quantitativa e qualitativa, do serviço
público, a Constituição franqueia o setor à iniciativa privada (art. 209) e
garante a liberdade de escolha do cidadão (art. 206, III).
Segundo excelente estudo de ANDRÉA ZAITUNE CURI, NAÉRCIO AQUINO MENEZES FILHO
e ERNESTO MARTINS FARIA sobre o ensino médio em escolas privadas paulistas, o
custo anual médio das que obtiveram nota maior ou igual a 60% na prova
objetiva do ENEM de 2006 superava os R$ 19.300,00; o daquelas com nota entre 50%
e 60% era de R$ 11.700,00; e mesmo o daquelas com nota inferior a 50% beirava os
R$ 7.000,00[5].
Dentre as 10 escolas com melhores notas nacionais no ENEM de 2011, apenas uma
era pública. Dentre as particulares, as mensalidades para o 3º ano do
ensino médio iam de R$ 780,00 a R$ 3.552,00, numa média de R$ 1.588,00.
Os números do ensino superior, embora menores, situam-se também muito acima
do teto de dedução atualmente em vigor[6].
Em prova adicional de que reconhece a incapacidade do Estado, na atual quadra
histórica, para satisfazer de forma direta e integral a demanda por instrução, a
Constituição imuniza a impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços as
instituições educacionais sem fins lucrativos que atendam aos requisitos da lei
(art. 150, VI, c), exoneração que em alguns casos alcança as
contribuições para a seguridade social (art. 195, § 7º).
Essas franquias tributárias – que seriam odiosas se a opção pela rede
particular pudesse ser considerada um capricho – constituem sinalização
inequívoca do constituinte quanto às prestações negativas que impõe ao Poder
Público em favor da educação.
De fato, sendo a um tempo decorrência e pressuposto da dignidade humana, e
por isso enformando o mínimo vital, o direito à educação tem eficácia imediata e
ambivalente: seja a positiva, de que aqui não se trata, seja a paralisante das
regras que o amesquinhem[7], inclusive de índole tributária.
Donde a conclusão de CARLOS LEONETTI[8] no sentido de que as despesas com educação particular
são necessárias e involuntárias, exigindo dedução da base de cálculo do
IRPF.
Além de ofensivo ao conceito de renda (dedução do mínimo vital), à capacidade
contributiva, ao não-confisco, ao direito fundamental à educação e à dignidade
humana, o estabelecimento de limites de dedução irrealistas fere ainda a
razoabilidade, que, como aduz HUMBERTO ÁVILA[9], “exige a harmonização das normas com as suas
condições externas de aplicação”.
Bem por isso, em decisão pioneira, a Corte Especial do TRF da 3ª Região
declarou a inconstitucionalidade do teto de dedução em foco (Arguição de
Inconstitucionalidade Cível nº 0005067-86.2002.4.03.6100/SP, Rel. Des. Federal
MAIRAM MAIA, DJe 14.05.2012).
Quanto aos gastos com a instrução de dependentes, malferido está ainda o
princípio da proteção da família (art. 206 e ss.). É que, ao tempo em que impõe
limites simbólicos para a dedução das despesas de educação realizadas no âmbito
do lar comum, a Lei nº 9.250/95 autoriza – com total acerto, aliás – o desconto
ilimitado dos pagamentos de pensão alimentícia (art. 8º, II, f), dentro
da qual, a teor do art. 1.694, caput, do Código Civil, devem figurar as
quantias necessárias à educação do alimentando.
Cabe demonstrar, por fim, os impactos financeiros de decisão do STF que
elimine o teto de dedução dos gastos com educação, de forma a autorizar o seu
abatimento integral (como, aliás, se faz para as despesas médicas).
No exercício de 2011 (ano-base 2010), o último para o qual tais informações
estão disponíveis[10], 23,96 milhões de contribuintes apresentaram
declaração de IRPF.
Os rendimentos tributáveis elevaram-se a R$ 946,24 bilhões, e as deduções
realizadas foram de R$ 232,50 bilhões, o que – feitas todas as contas (IR-fonte
+ saldo a pagar – saldo a restituir) – levou a um IRPF total de R$ 81,11
bilhões.
Os gastos com instrução declarados foram de R$ 31,37 bilhões, mas o teto
legal limitou a dedução a R$ 15,46 bilhões. Houve, assim, R$ 15,91 bilhões em
despesas com educação que não puderam ser abatidas.
Admitindo-se que todo este valor tenha sido tributado à alíquota máxima de
27,5%, conclui-se que a redução de arrecadação decorrente da procedência da ADI
não superaria os R$ 4,37 bilhões em 2010 (se o pedido se estendesse a
períodos pretéritos, o que não é o caso), valor parcíssimo ante os investimentos
públicos em educação – da ordem de R$ 213,15 bilhões naquele ano[11] – e da relevância social da matéria, mas que
acarreta ônus elevados para aqueles a quem o abatimento é negado.
Um exercício hipotético o comprova. Tome-se um servidor público federal com
dois filhos em uma escola particular cuja anuidade seja de R$ 10.000,00, sem
outras fontes de renda, sem outros dependentes e sem gastos com saúde.
Segue o cálculo do seu IRPF 2012/2013, com e sem o limite de dedução das
despesas com instrução, caso os seus rendimentos totais no ano tenham sido de R$
75.000,00[12]:
Situação 1: atendido o teto dos gastos com
educação:
● Base de cálculo: 75.000,00 – 3.949,44
(desconto-padrão com os dois dependentes) – R$ 8.250,00 (contribuições
previdenciárias) – R$ 6.182,30 (teto das despesas de educação) = R$
56.618,26
● IRPF devido: R$ 56.618,26 x 27,5% – R$ 9.078,38 =
R$ 6.491,64
Situação 2: plena dedutibilidade dos gastos com
educação:
● Base de cálculo: 75.000,00 – 3.949,44
(desconto-padrão com os dois dependentes) – R$ 8.250,00 (contribuições
previdenciárias) – R$ 20.000,00 (despesas de educação) = R$ 42.800,56
● IRPF devido: R$ 42.800,56 x 22,5% – R$ 6.625,79 =
R$ 3.004,33
A diferença é de R$ 3.487,31, ou aproximadamente 60% de um salário
mensal do contribuinte.
Caso o rendimento anual fosse de R$ 150.000,00, mantidas as demais condições,
o IRPF devido seria de R$ 24.847,88 na situação 1 e R$ 21.048,02
na situação 2, uma diferença de R$ 3.799,86, algo em torno de 1/3 de um
salário mensal do contribuinte.
Caso os filhos fossem três, o IRPF devido seria, ceteris
paribus:
● para o contribuinte com rendimentos totais de R$ 75.000,00: R$
5.098,52 na situação 1 contra R$ 942,32 na situação 2 (a diferença
representa cerca de 70% de um salário mensal do contribuinte);
● para o contribuinte com rendimentos totais de R$ 150.000,00: R$
23.454,77 na situação 1, contra R$ 17.754,97 na situação 2 (a
diferença beira os 50% de um salário mensal do contribuinte).
Como fica claro, as diferenças são sempre expressivas para as faixas de
rendimentos consideradas, e as perdas são maiores para os cidadãos com menores
rendimentos e/ou com maior número de dependentes, precisamente aqueles que
revelam menor capacidade econômica.
Enquanto isso, o Salgueiro foi autorizado pelo Ministério da Cultura a
captar, mediante incentivos fiscais[13], R$ 4,9 milhões para o seu desfile de 2013[14].
É assim: escola, no Brasil, para dar direito a dedução integral de imposto de
renda, só mesmo escola de samba.
[1] J.F. BILHON, De l’Administration des Revenus Publics
Chez les Romains. Paris: Guilleminet, An XI (1803), p. 26-27.
[3] Os dados do ensino superior são de 2003.
TRISTAN McCOWAN. O crescimento da educação superior privada no Brasil:
implicações para as questões de equidade, qualidade e benefício
público. In Archivos Analíticos de Políticas Educativas vol. 13,
nº 27, abril de 2005, p. 03. Disponível em http://epaa.asu.edu/epaa/v13n27/,
acesso em 17.03.2013.
[6] Ver artigos citados na nota 03.
[7] LUÍS ROBERTO BARROSO. O Novo Direito Constitucional
Brasileiro: Contribuições para a Construção Teórica e Prática da Jurisdição
Constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 305-315 e
326.
[8] O Imposto sobre a Renda como Instrumento de Justiça
Social no Brasil. Barueri: Manole, 2003, p. 194.
[9] Teoria dos Princípios: da Definição à Aplicação dos
Princípios Jurídicos. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 143-144.
[12] O desconto-padrão por dependente é de R$ 1.974,72 (Lei
nº 9.250/95, art. 8º, II, c, 6).
A possibilidade de dedução plena dos pagamentos à previdência social oficial
está prevista na alínea d do mesmo dispositivo. Para os servidores
federais não incluídos no FUNPRESP, esta contribuição é de 11% (Lei nº
10.887/2004, art. 4º, I).
A fórmula para o cálculo do IRPF 2012/2013 é a seguinte:
Tabela Progressiva Anual – IRPF 2013
|
Base de cálculo em R$
|
Alíquota%
|
Parcela a deduzir do imposto em R$
|
até 19.645,32
|
-
|
-
|
de 19.645,33 até 29.442,00
|
7,5
|
1.473,40
|
de 29.442,01 até 39.256,56
|
15
|
3.681,55
|
de 39.256,57 até 49.051,80
|
22,5
|
6.625,79
|
acima de 49.051,80
|
27,5
|
9.078,38
|